sexta-feira, 23 de março de 2007

António Fragoso

A última carta de António Fragoso (1897-1918):

A ESFOLHADA

Ao Fernando Botelho Leitão

Meu caro Fernando

As férias estão terminadas. Dentro de breves dias iremos novamente trabalhar, pró música, nessa complicada engrenagem da vida da capital, onde o nosso espírito se cansa, mas onde temos também os momentos de mais elevado prazer espiritual, aqueles que nos oferecem as audições das grandes obras dos grandes mestres da música, essa arte subtil e engenhosa que nós cultivamos com tanta fé e tão entusiástica paixão. E como vemos aproximar-se o dia em que temos de deixar aqueles que nos são mais queridos, fazemos esforços para nos divertirmos o mais possível, tentando assim esquecermo-nos por um momento da tristeza da vida de hoje que cada vez está sendo mais complicada e mais angustiosa, tais e tão graves são as doenças que dia a dia vão devastando impiedosamente o Corpo e a Alma do nosso pobre país.
Mas nós devemos encarar a vida com uma grande dose de filosofia positiva e por isso nos vamos divertindo à grande enquanto os males nos não batem à porta. De resto, como dizia o grande Fradique Mendes, “este mundo está superiormente organizado” e, por isso mesmo, cheio de compensações. Uns sofrem, outros riem: amanhã invertem-se os papéis e o mundo gira com a mesma velocidade e com a mesma fleuma!
Ora foi filosofando fleumaticamente que as pessoas gradas que este ano têm veraneado na Pocariça, a tão hospitaleira e encantadora aldeia onde nasci, e onde ainda não chegaram senão os ecos das epidemias, puderam tomar para lema da sua vida de férias, aquele verso tão português do Burro do Sr. Alcaide que principia assim:
-“Viva a folia, dançar, dançar, etc...”
E, na verdade, a nossa vida, de há dois meses para cá, tem sido um constante e vertiginoso rodopiar, entre os passos lentos e tantas vezes cheios de ternura duma valsa de Berger, e os saltos ursinos e desengonçados dum fox-trot.
Ontem, porém, despimos a rabona de todos os dias, e vestimos a jaqueta dos homens de lavoura; as senhoras enfeitaram-se com as cores garridas de Viana do Castelo; e, descendo da sala ao campo, fomos dançar numa eira, ao som da guitarra e do harmónio, as danças tão simples e tão pagãs do nosso povo.
Tinha-se organizado uma esfolhada; como porém, o mês de Agosto já passou, tendo levado consigo o calor e a luz prateada do seu luar, a esfolhada teve de ser feita de dia, à hora em que o sol de Outono vai amarelecendo as folhas dos vinhedos que ainda há bem poucos dias levaram às adegas, em alegrias báquicas, a riqueza abençoada do seu suco. Sendo assim, ela não podia ter o encanto sugestivo daquela esfolhada minhota que Júlio Diniz nos descreve através da prosa tão simples e tão cheia de harmonia; mas teve, sem dúvida, o mesmo ar de alegria e de mocidade.
Estavam já todas as senhoras, lindas no seu traje minhoto, e alguns rapazes, procedendo à descamisa do milho, quando apareceram o Mário Vaz, o Manuel Pessoa e o Carlos, meu irmão, todos de calça branca e cinta escarlate, tocando ruidosamente o popularíssimo Zé P’reira. Podes calcular o barulho, a alegria esfusiante, os vivas e as palmas que eles provocaram. Depois houve cantigas ao desafio em que mais uma vez saltou, em rimas cheias de graça, a veia poética do Mário Vaz, a que a Armanda Pessoa respondia com aquela sua voz tão docemente timbrada; o Jorge e o Arnaldo Frota flirtaram; os felizes a quem a Boa-sorte fez chegar às mãos as espigas de milho-rei, regalaram-se de dar abraços; o Evaristo Pessoa mais uma vez pôde manifestar quanto é grande o seu talento para a arte de Niepce; os petizes fartaram-se de berrar, e eu...eu fiz o que pude!...
O sol escondia-se já por detrás dos pinheirais quando chegaram as criadas com papas de abóbora...Nova vozearia, novos vivas, novas palmas!...E, num instante, todo o grupo, agarrado à sua colher e ao seu prato, saboreava esse belo acepipe com um apetite digno de Pantagruel. A alegria faz fome, lá dizia não sei quem...e, na verdade, assim é. Foi só então que começaram as danças.
E os ecos puderam repetir ainda, à hora melancólica das Ave-Marias, as melodias alegres do Vira, da Caninha Verde, dessas danças tão caracteristicamente portuguesas que se cantavam na eira.
Nessa festa, nós pudemos sentir bem o que há de alegre e bom na alma do nosso povo; mas nem por isso deixou de ter o seu cunho de elegância e distinção.
Tive pena que cá não estivesses para nela tomares parte; que ao menos a minha pena tenha podido dar-te uma pálida impressão do que ela foi.

Teu amigo certo
A. Lima Fragoso
4/10/918

FRAGOSO, A. Lima, A Esfolhada, s.l., 1918, apud JORGE, Leonardo, António Fragoso - Um génio feito saudade, Rio de Janeiro, Livros de Portugal, 1968, pp. 93-95.

Fragoso morreria 9 dias depois (aos 21 anos de idade) vitima da gripe pneumónica, bem como duas das suas irmãs e também um irmão. De cinco irmãos apenas a mais nova sobreviveria.

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